O BRASIL, A ARBITRAGEM E A GUERRA DE SECESSÃO
O BRASIL, A ARBITRAGEM E A GUERRA DE SECESSÃO*
Lícia Nascimento**
Entre 1861 e 1865 os Estados Unidos da América enfrentaram uma guerra civil, mais conhecida como Guerra da Secessão, motivada pelos estados do Sul escravocrata, denominados Estados Confederados, desejosos da separação dos estados do Norte abolicionista.
Foi um conflito que apesar de ter custado muitas vidas e muitos recursos financeiros e políticos estadunidenses, viabilizou avanços representativos na consolidação da democracia no Ocidente, especialmente nas Américas. Coube ao décimo sexto presidente recém-eleito, Abraham Lincoln, conduzir o país em sua maior crise, preservando a integridade nacional e abolindo a escravidão institucional.
Considerando que a independência da Inglaterra havia ocorrido há menos de noventa anos, em 04 de julho de 1776, os Estados Unidos da América ainda passavam por processos de formatação territorial. Os ideais de liberdade e igualdade propagadas no movimento de independência ainda não ressoavam em uníssono.
A tradição sulista de produção algodoeira estava apoiada no regime da escravidão de africanos e a aristocracia agrícola não acreditava nas ideias liberais de vanguarda que vinham do Norte para manutenção do seu status financeiro e social.
A Grã-Bretanha que dependia dos alimentos fornecidos pelo comércio americano, foi prejudicada pela guerra, mas oficialmente não reconhecia o desejo de independência dos Confederados e apoiava Lincoln.
Os ingleses declararam oficialmente neutralidade, entretanto, a herança colonialista e clerical, além da dependência dos produtos agrícolas do sul dos Estados Unidos resultou no apoio velado aos separatistas pela elite britânica.
Os estaleiros ingleses, especialmente em Liverpool, construíram navios cruzadores usados contra a União como contratorpedeiros comerciais para os Confederados, inicialmente classificados como navios mercantes, recebendo o arsenal de armas após a construção, como forma de disfarçar a burla ao compromisso de neutralidade.
Estes navios adicionaram mais uma camada à alta beligerância já instalada pela Guerra da Secessão. Todos recebiam o prefixo “CSS” em sua denominação a significar “Confederate State Navy”. Ficaram conhecidos o CSS Shenandoah, CSS Florida, CSS Gerogia, CSS Nashivile e o mais famoso e destrutivo, o CSS Alabama.
A esquadra confederada trouxe terror às águas americanas, deixando um rastro de violência, mortes e prejuízos comerciais e financeiros à União, pois afundou inúmeros navios mercantes, a ponto de Raphael Semmes, Capitão do CSS Alabama, tornar-se personalidade de fama e encantamentos internacionais, após queimar 65 embarcações.
Com fim do conflito em 1865, os Estados Unidos da América passaram a reivindicar da Grã-Bretanha indenização pelos prejuízos sofridos pelos navios construídos nos estaleiros ingleses fundamentados na quebra do princípio da neutralidade.
Os americanos passaram a exigir reparações pelos danos causados pelos navios britânicos, particularmente o CSS Alabama, dinheiro que a Coroa se recusou a pagar. A disputa continuou por anos após a guerra.
Somente com a assinatura do Tratado de Washington em 1871, ao estabelecer cinco arbitragens distintas, ambicioso empreendimento arbitral internacional pôs fim à discussão por meio da arbitragem internacional conhecida como Arbitragem de Genebra de 1872.
O Tribunal foi constituído em 15 de dezembro de 1871, em Genebra, na Suíça, com competência universal sobre as divergências e as reivindicações decorrentes dos atos dos cruzadores confederados.
Pelo Tratado, as partes concordaram em submeter todas as “Reivindicações do Alabama” a um tribunal de arbitragem composto por cinco árbitros nomeados: pelo Presidente dos Estados Unidos, Charles Francis Adams, cavalheiro; pela Rainha Britânica, Sir Alexander James Edmund Cockburn, Lorde Chefe de Justiça da Inglaterra; pelo Rei da Itália, Conde Frederick Sclopis, ministro de Estado, senador do Reino da Itália; pelo Presidente da Confederação Suíça, Sr. James Stämpfli; pelo o Imperador do Brasil, Marcos Antônio d’Araújo, Visconde de Itajubá, enviado extraordinário e ministro plenipotenciário na França.
A título de curiosidade transcreve-se parecer de 04 de setembro de 1871 com instruções ao árbitro brasileiro, Visconde de Itajubá, expedido pelo Conselheiro Carlos Carneiro de Campos do Conselho de Estado e Política Externa do Ministério de Negócios Estrangeiros do Império:
Sobre o assunto do ofício reservado, de 28 de junho último, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, é minha opinião que a pouca coisa se reduzem naturalmente as instruções de que aí se fala. Um árbitro é um juiz e, como tal, deve decidir as questões segundo for de justiça, independente de considerações de interesse, em favor de algumas das partes. No caso vertente, o árbitro terá de resolver as questões que lhe são sujeitas avaliando cuidadosamente os fatos, com todas as suas circunstâncias e aferindo‑os pelos tratados que houver entre as nações litigantes e, na falta destes, pelo direito das gentes consuetudinário e princípios racionais do direito das gentes.
Que importa ao árbitro (que só deve decidir com justiça, alheio a prevenções) que um terceiro tenha questões idênticas às de alguns dos litigantes de quem é ele juiz? O seu dever é decidir com justiça, seja isso contra quem for. Demais, se as questões desse terceiro são justas, a decisão do árbitro, uma vez também justa, não as prejudica; se, porém, forem injustas, não é isso razão para que o árbitro se aparte dos princípios de justiça na solução que tem de dar sobre as questões dos outros. Assim, o meu parecer é que não há que prescrever ao árbitro, que necessariamente há de ser pessoa dotada de qualidades apropriadas para, com honra do Império, corresponder à confiança de que é depositário.
Sala das Sessões, 4 de novembro de 1871.
Carlos Carneiro de Campos
Em seus argumentos apresentados ambos os advogados dos Governos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha expuseram em detalhes, os principais aspectos dos fatos históricos, fundamentos jurídicos e provas. O documento era formado por onze volumes com elementos pertinentes, tais como os documentos do tratamento diplomático da controvérsia, desde o início Guerra Civil, chamada pelos Estados Unidos de “Rebelião Americana”, até a conclusão do Tratado de Whashington em 1871, apresentando de forma autêntica a natureza das divergências entre as duas Nações.
Os advogados dos Estados Unidos buscaram estabelecer a responsabilidade do Governo Britânico, de acordo com os critérios definidos pelo Tratado, já que as partes se comprometeram mutuamente por meio de um contrato expresso, prestigiando o princípio do pacta sunt servanda entre os dois Governos.
As partes contratantes concordaram com regras que definiram inicialmente as obrigações gerais de um Governo neutro, estabelecendo o que cada um estava obrigado a fazer ou a não fazer durante o período conflituoso.
Assim, de acordo com os Estados Unidos, o Governo Britânico, mesmo assumindo compromisso diplomático de neutralidade, não exerceu a devida diligência (due dilligence) para impedir o preparo, armamento ou equipamento, dentro de sua jurisdição, de navios que tinha motivos razoáveis para acreditar que seriam usados para guerra contra os Estados Unidos.
Além disso, não exerceu a mesma diligência para impedir a saída de sua jurisdição de certos navios destinados à guerra contra os Estados Unidos, sendo tais navios adaptados, total ou parcialmente, dentro dessa jurisdição, para uso bélico.
Também permitiu que os Confederados beligerantes utilizassem os portos ou águas da Grã-Bretanha como base de operações militares, renovação de suprimentos militares e recrutamento de homens para a guerra naval.
O Governo Britânico divergiu quanto à “natureza e extensão” das reivindicações submetidas ao Tribunal, defendendo que em sua maioria seriam danos “indiretos” e que não poderia ser responsabilizado.
Em sua decisão o Tribunal estabeleceu que a proclamação de neutralidade implica em obrigação de devida diligência no seu cumprimento e no direito de uma parte prejudicada por violação da neutralidade de ser indenizada.
Entendeu que a construção, o equipamento e armamento de um navio, bem como a livre admissão de navios em portos de colônias, são considerados violações da neutralidade e que a insuficiência de meios legais não justifica a falta de diligência, bem como que se deve eliminar reivindicações duplas pela mesma perda.
Informou que instruiu o procedimento considerando plenamente o tratado, os fatos, provas e argumentos, bem como comunicações feitas pelas partes de forma imparcial. De acordo com a decisão unânime do Tribunal de Genebra de 1872 a Grã-Bretanha era legalmente responsável pelas perdas diretas causadas pelo Alabama e outros navios. Declarou ainda extintas todas as reivindicações relativas aos fatos.
Os Estados Unidos receberam uma indenização de US$ 15,5 milhões em ouro. Além disso, a Grã-Bretanha expressou oficialmente seu pesar pelo assunto. Esse acordo deu novo impulso ao processo de arbitragem, que estava latente há muitos anos.
Tanto quanto a guerra, a arbitragem, enquanto método de solução de controvérsias, sempre se fez presente nas comunidades humanas. Após a formação dos Estados Nacionais, a eleição de árbitros para resolução de contendas estatais, baseadas fundamentalmente no compromisso, remonta a práticas diplomáticas aperfeiçoadas.
As “Alabamas Claims” de 1872 são consideradas referência significativa no direito internacional público porque promoveram o uso da arbitragem para resolver disputas pacificamente e porque esclareceram as responsabilidades das partes neutras em relação aos beligerantes.
O tratado delineou certas obrigações marítimas dos países neutros em tempo de guerra, estabeleceu que um governo neutro deve usar a devida diligência para impedir o aparelhamento de embarcações destinadas a travar guerra contra uma potência com a qual estivesse em paz. Também estipulou que um país neutro não deve permitir que seus portos ou águas sejam usados como base para operações navais para fins semelhantes.
Em 1899 foi criada a Corte Permanente de Arbitragem, a partir de tratativas feitas na Primeira Conferência de Paz de Haia. Em 1928 foi assinado em Genebra o Ato Geral de Arbitragem.
Depois de duas Guerras Mundiais, a sociedade internacional vivenciou um período de intensa interação comercial, cultural e financeira, viabilizando a normatização internacional e impulsionado por organizações como a Organização das Nações Unidas - ONU e pela boa vontade das nações.
Atualmente as questões entre Estados podem ser tratadas por vários Tribunais instituídos mediante convenções, tais como a Corte Internacional de Justiça e nas questões marítimas há o Tribunal Internacional para o Direito do Mar.
Ao que parece, este sistema criado com seus fundamentos na busca da paz entre os Estados Nacionais, por meio de celebração de instrumentos, contratos, acordos, compromissos, convenções enquanto formas de solução pacífica de controvérsias, está perdendo a sua legitimidade nas últimas décadas.
A força cogente das normas de Direito Internacional é o desejo de autopreservação humana, tal como fizeram as nações que procuraram no passado construir soluções para as suas diferenças, como a Arbitragem de Genebra de 1872.
*************************************
* Para conhecer mais sobre o tema recomendo as seguintes leituras
DE FIGUEIREDO, Roberto Castro. Alabama Claims: Decision of the Arbitrators respecting National Losses. Rev. Bras. Arb., v. 8, p. 231, 2010. Disponível em: https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.kluwer/rvbrasarb0008&div=74&id=&page=. Acesso em 16 de junho de 2025.
DASHEW, Doris W. The United States and the settlement of the Alabama claims. 1973. Tese de Doutorado. Columbia University. Disponível em: https://www.proquest.com/openview/4ad864ffb5799ada7c43299666d6ecbd/1.pdf?pq-origsite=gscholar&cbl=18750&diss=y. Acesso em 16 junho 2025.
REPORTS OF INTERNATIONAL ARBITRAL AWARDS. Alabama claims of the United States of America against Great Britain. Disponível em: https://legal.un.org/riaa/cases/vol_XXIX/125-134.pdf. Acesso em 16 junho de 2025.
SOARES, Guido Fernando Silva. Introdução histórica ao estudo das soluções pacíficas de litígios e das arbitragens comerciais internacionais. Revista da Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, v. 71, p. 163-208, 1976. Disponível em: https://revistas.usp.br/rfdusp/article/view/66778.. Acesso em 16 junho 2025.
UNITED STATES. Alabama Claims: Argument of the United States Delivered to the Tribunal of Arbitration at Geneva. Washington: Government Printing Office, 1872. Disponível em: https://archive.org/details/alabamaclaimsarg00unit. Acesso em: 16 jun. 2025.
** Advogada, pós-graduada em Direito Processual, dedicada a atividades profissionais do Direito Marítimo. Atualmente é aluna do Curso de Pós-Graduação em Direito Internacional do Mar e Direito Marítimo da PUC-MG e Direito da Infraestrutura da PUC-MG. Integra o quadro de advogados da Companhia Docas do Rio de Janeiro.
Comentários
Postar um comentário