BATEAU MOUCHE

 






BATEAU MOUCHE*


Lícia Nascimento**

Em 31 de dezembro de 1989 naufragou entre a Ilha de Cotunduba e o Morro do Pão de Açúcar no Rio de Janeiro às 23h45min a embarcação Bateau Mouche IV. Eram 149 passageiros a bordo, dos quais 55 morreram afogados e os demais foram resgatados por embarcações próximas que presenciaram o acidente.

Foi uma tragédia que marcou a história do Brasil, a vida das vítimas e suas famílias. As causas, como se apurou nas investigações que se seguiram, foram um misto de imperícia, com negligência e falta de fiscalização adequada das autoridades, para se delimitar o mínimo.

Há uma infinidade de matérias jornalísticas, artigos, livros e documentários que tratam sobre o acidente e suas consequências, sempre se sublinhando a conduta dos responsáveis pelo passeio turístico que resultou no naufrágio, bem como a falta de efetividade das decisões judiciais em penalizá-los ou indenizar as vítimas e suas famílias.

No ordenamento jurídico brasileiro, o evento originou processos e apurações, dentre as quais processo administrativo na Capitania dos Portos do Rio de Janeiro, processo no Tribunal Marítimo, inquéritos policiais, ações penais, ação penal militar, múltiplas ações cíveis indenizatórias etc. Todos estes procedimentos e instâncias guardam relativa independência entre si, o que pode causar perplexidade inicial diante da diversidade de decisões resultantes destes julgamentos.

Por outro lado, quando se trata do Tribunal Marítimo, foi conferido o devido valor probatório à sua decisão quanto à matéria técnica relativa ao acidente marítimo.

Prova disto é que o resultado da conclusão do órgão colegiado a respeito das causas do naufrágio do Bateau Mouche IV foi tomada como fundamento para atribuição de responsabilidades em diversas instâncias, especialmente nos processos cíveis indenizatórios.

Frise-se que para se realizar uma análise técnica da atuação do Tribunal Marítimo no caso, cabe expor a delimitação legal da sua competência quanto aos acidentes marítimos, quais sejam: definir-lhes a natureza e determinar-lhes as causas, circunstâncias e extensão, indicando os responsáveis e aplicando-lhes as penas estabelecidas na Lei 2.180/54, propondo medidas preventivas e de segurança da navegação (art. 13, I, Lei 2.180/54).

As penalidades aplicáveis aos responsáveis pelos acidentes marítimos (art. 121 da Lei 2.180/54) são repreensão, medida educativa concernente à segurança da navegação ou ambas, suspensão de pessoal marítimo, interdição para o exercício de determinada função, cancelamento da matrícula profissional e da carteira de armador, proibição ou suspensão do tráfego da embarcação, cancelamento do registro de armador, multa, cumulativamente ou não, com qualquer das penas anteriores.

Assim, percebe-se que a especificidade da natureza e resultado do julgamento dos acidentes da navegação pelo TM não permite que as condenações impostas “invadam” a competência de tribunais que decidam em matéria militar, cível, criminal etc.

Na verdade, seus decisórios servem para auxiliar o Poder Judiciário. A sua confiabilidade é fruto da especialidade técnica e da segurança jurídica de suas decisões.

A especialidade técnica se dá pela competência exclusiva da Marinha do Brasil para instauração e instrução de inquéritos para apuração de acidentes marítimos (art. 33 da Lei 2.180/54) que são regulamentados por normas internacionais de segurança e por Normas da Autoridade Marítima para Inquéritos Administrativos sobre Acidentes e Fatos da Navegação - NORMAM09/DPC.

A autoridade marítima (Capitania dos Portos) deve apresentar relatório conclusivo do inquérito administrativo no prazo de 10 dias. Caso sejam apontados possíveis responsáveis, estes terão 10 dias para apresentar defesa prévia. O procedimento é encerrado e enviado ao Tribunal Marítimo.

No Tribunal Marítimo o processamento e julgamento dos acidentes de navegação é semelhante ao sistema processual civil brasileiro, com garantias ao contraditório e ampla defesa, assistência obrigatória de advogados, sistema recursal e procedimentos vistos nos códigos de processo judiciais.

Todos estes fatores conferem confiabilidade e força probatória suficientes para que as decisões e fundamentos técnicos do TM sejam utilizadas no Judiciário.

No caso do Bateau Mouche IV, muito embora seja remanescente o sentimento de impunidade pela sociedade em geral, a análise do acórdão do Tribunal Marítimo que julgou o acidente, permite entender como se deram as ações e omissões que causaram o naufrágio, bem como as responsabilidades dos respectivos agentes.

O processo foi registrado com o número 13.628/1989, tramitando regularmente após a conclusão do inquérito administrativo e a representação pela Procuradoria Especial da Marinha que representou em face da Bateau Mouche Rio Turismo Ltda (armadora), do mecânico responsável pela manutenção da embarcação, apontou falhas do pessoal militar ao emitir autorização de aumento de lotação sem exigir estudo prévio e ao realizar as vistorias na antevéspera do fato.

A defesa da armadora arguiu incompetência do TM, que o barco havia sido vistoriado pelas autoridades navais e seus agentes e que contava com comandante e mecânicos experientes. Alegou que a causa do naufrágio teria sido o alagamento da casa de máquinas por condições adversas do mar enfrentado por imprudência do comandante, pelas vigias (escotilhas) abertas e modificação dos vasos sanitários a permitir entrada de água.

A defesa do mecânico arguiu também a incompetência do TM e a nulidade do inquérito e suas conclusões, tendo em vista que seu encarregado (Capitão de Fragata Ricardo Coutinho) foi delegado pelo superior hierárquico Capitão de Mar e Guerra Aloísio Romano Moreira que presidiu a vistoria que considerou o Bateau Mouche IV apto a navegar dois dias antes do acidente. No mérito alegou que seguiu ordens do patrão, na condição de simples empregado, cuja atribuição era realizar consertos solicitados.

Após a instrução, o Tribunal Marítimo rejeitou a preliminar de incompetência por se tratar de acidente de navegação, esclarecendo que as falhas dos órgãos e agentes fiscalizadores não eximem de responsabilidade os fiscalizados.

Afastou a preliminar de nulidade do inquérito, pois foi fiscalizado pela Procuradoria Especial da Marinha. Foram feitas várias constatações relativas ao estado da embarcação e às vistorias e fiscalizações que precederam o acidente.

Houve alterações irregulares feitas para adequar para exploração turística a embarcação construída em 1973 nos estaleiros da Indústria Naval do Ceará batizada, inicialmente como “Kamaloka” e utilizada para fins comerciais de pequeno porte.

Após a aquisição pela Bateau Mouche Rio Turismo, em 1980, a embarcação foi rebatizada e, sem autorização da Capitania dos Portos, alterada em seu arranjo geral interior, recebendo pesadas estruturas de ferro e quatro toneladas de cimento, inadequadas para a sua capacidade.

Outra causa apontada pelo TM foi a permissão de alteração da lotação máxima pela Marinha de 62 para 153 pessoas a bordo. Irregularidades ignoradas pela comissão de peritos da Marinha que dois dias antes do acidente fez vistoria autorizando o passeio, o que levantou suspeitas de corrupção destes agentes.

Além disso, na noite do acidente o mobiliário da embarcação não estava fixado, não existiam instruções a bordo para o caso de abandono, incêndio ou colisão e as vigias náuticas da sala de máquinas estavam abertas. Dos 54 coletes periciados, 30 estavam vencidos

O Bateau Mouche IV desatracou às 21h15min e tendo sido visualizada inclinação irregular à boreste, foi interceptado por uma lancha da Polícia Naval que verificou a sua documentação, contou 149 passageiros, o que estava dentro da permissão fornecida.

Com condições meteorológicas favoráveis, após a ceia na Baia de Guanabara, a embarcação naufragou a caminho de Copacabana para o avistamento dos fogos de artifício.

Os náufragos foram resgatados por outras embarcações que estavam no local e o auto de exame pericial atestou que o Bateau Mouche IV naufragou após emborcar por perda de estabilidade. Entre as vítimas do acidente estavam o condutor da embarcação e o engenheiro civil e eletricista responsável pelo supervisionamento e manutenção da embarcação

O Tribunal Marítimo julgou o processo em 15/02/1990 e no seu acórdão delimitou como as causas do naufrágio: condição precária da estabilidade da embarcação que não suportaria o quantitativo dos 149 passageiros a bordo; mal estado de conservação do casco; entrada de água pelos banheiros do convés inferior; vigias abertas e sem vedação adequada; desempenho insatisfatório da bomba de esgoto; instalação de materiais pesados demais; distribuição inadequada do peso.

A decisão final do colegiado foi que avarias e defeitos da embarcação provocaram o seu emborcamento por deficiência de manutenção, estanqueidade e estabilidade. Considerou o acidente decorrente negligência. Condenou a Bateau Mouche Rio Turismo Ltda à pena de cancelamento de Registro de Armador cumulativamente com pena de multa. O mecânico Edson Gonçalves de Carvalho também foi condenando em multa dez vezes menor. O pescador Jorge Souza Viana, que ajudou no resgate de dezenas de vítimas, foi elogiado pela participação relevante no salvamento de sobreviventes e foi proposto ao governo do Estado do Rio de Janeiro que ele fosse recompensado.

O Tribunal também determinou o envio de cópia do acórdão à Segunda Auditoria da Marinha da Primeira Circunscrição Judiciária Militar, órgão do Poder Judiciário a quem coube o julgamento dos possíveis crimes militares ocorridos.

 Na justiça militar, três dos oficiais réus foram absolvidos e outros três, condenados, os quais cumpriram as suas respectivas penas em liberdade por serem réus primários.  Cópia do acórdão foi encaminhada à 12ª Vara Criminal da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro, onde tramitava o processo criminal, da Justiça comum relativo ao acidente.

É inevitável a reflexão sobre o nível de segurança dos transportes utilizados no Brasil, considerando as inúmeras brechas encontradas em ações e omissões para elevar o nível de insegurança do passeio do Bateau Mouche IV ao ponto do naufrágio criminoso em 1989/1990.

Embora a fiscalização atualmente tenha mais confiabilidade, sabe-se que acidentes parecidos acontecem corriqueiramente nos rios e mares nacionais em menor escala, o que não os torna menos graves.

Tudo isto corrobora para valorização do Tribunal Marítimo como instância administrativa mais especializada e célere a apreciar e apurar os acidentes da navegação, resultando na segurança técnica e jurídica das decisões proferidas eventualmente pelo Poder Judiciário sobre o tema e na efetiva segurança da navegação em águas nacionais.


***************************

*Para conhecer melhor o tema, sugiro as seguintes leituras:

Sobre o Tribunal Marítimo. Disponível em: https://www.marinha.mil.br/tm/sobre

2 BRASIL. Lei nº 2.180, de 5 de fevereiro de 1954. Dispõe sobre o Tribunal Marítimo. Disponível: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L2180compilado.htm

BRASIL. Tribunal Marítimo. Regimento Interno Processual do Tribunal Marítimo. Resolução TM nº 55/2021. Diário Eletrônico do Tribunal Marítimo, Rio de Janeiro, 4 jun. 2021. Disponível em: < https://www.marinha.mil.br/sites/www.marinha.mil.br.tm/files/file/judiciario/legislacao/RIPTM.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2025.

** Advogada, pós-graduada em Direito Processual, dedicada a atividades profissionais do Direito Marítimo. Atualmente é aluna do Curso de Pós-Graduação em Direito Internacional do Mar e Direito Marítimo da PUC-MG. Integra o quadro de advogados da Companhia Docas do Rio de Janeiro.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

AS AVARIAS GROSSAS NO DIREITO MARÍTIMO

BREVE REFLEXÃO SOBRE O MERCOSUL